por Lucía Ferrés
Fragilidades estruturais da CVM, apontadas desde 2020, abriram espaço para decisões controversas nos casos Master e Ambipar
O mercado de capitais brasileiro, motor vital para o desenvolvimento econômico, tem na confiança seu alicerce fundamental. A CVM, autarquia reguladora, possui o mandato estatal de proteger a integridade e a transparência do setor.
Desde 2020, o Tribunal de Contas da União (TCU) vem alertando a CVM sobre os perigos decorrentes da captura. Esse fenômeno é caracterizado pela subversão das decisões da Administração Pública em favor de interesses privados e é capaz de pavimentar o caminho para escândalos e prejuízos substanciais, corroendo perigosamente a credibilidade do setor, deflagrando uma crise de ética e moral capaz de abalar os fundamentos da regulação.
A legislação brasileira desenhou um modelo robusto para blindar os entes de regulação de ingerências privadas e políticas. Leis como o Marco Geral das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019), a Lei das Autarquias Federais (Lei nº 12.813/2013) e a própria Lei da CVM (Lei n.º 6.385/76) estabelecem um ideal de autonomia política, administrativa e financeira. Mandatos fixos para dirigentes, exigência de reputação ilibada e notório conhecimento, transparência decisória, publicidade, devido processo legal e mecanismos de accountability são os pilares desse escudo. O objetivo é claro: garantir que o regulador atue como um guardião técnico e imparcial do interesse público. No entanto, a realidade diagnosticada pelo TCU mostra uma abissal distância entre a letra da lei e a prática.
Em 2020, após uma profunda auditoria, o Tribunal de Contas da União alertava o órgão regulador para as fissuras em sua estrutura, um prenúncio dos escândalos que se tornaram notícia em 2025. O TCU apontou que a motivação para nomeação de seus dirigentes não se fundamentava em conhecimento técnico; privilegiavam-se, em lugar, currículos de ampla atuação na advocacia privada e sem experiência em gestão pública, propiciando conflitos de interesses. O ideal técnico cedeu à conveniência. O órgão de controle externo também criticou que as decisões do colegiado regulador, especialmente em processos sancionadores, eram tomadas em caráter ad hoc, sem referência a precedentes consolidados, em frontal descumprimento à transparência e à segurança jurídica exigidas pela LINDB. A ausência de publicidade, o acesso insuficiente aos processos administrativos, a falta de clareza nas competências internas e a opacidade na motivação das decisões, todas violando diretamente as leis, transformavam o sigilo em regra, e não exceção, concedendo uma licença para a opacidade que favorece a influência indevida. A estrutura para uma atuação independente, dotada de governança e processos bem delineados, simplesmente não se concretizava, e a própria auditoria do TCU, desde 2020, apontou o não cumprimento das regras sobre a estruturação de uma auditoria e ouvidoria independentes, fragilizando os mecanismos internos de fiscalização e controle. Em suma, o TCU não diagnosticou meros “ajustes finos”, mas sim falhas sistêmicas que corroem a capacidade do regulador de ser independente e técnico, criando um terreno fértil para que a captura florescesse.
O resultado de ignorar esses alertas estampou o noticiário durante o ano de 2025, com sucessivos escândalos que chocaram o mercado, como os da Ambipar e do Banco Master. A ausência de mecanismos eficazes para barrar influências políticas e privadas nas decisões pavimentou o caminho para crises e prejuízos, que resultaram de decisões que priorizaram interesses privados sobre a proteção do mercado e do investidor.
O caso Banco Master ilustra o fenômeno da “porta giratória”: a transição de um ex-dirigente do órgão regulador para a advocacia do Banco Master, após uma decisão do próprio colegiado que aceitou um Termo de Compromisso em um caso de supostas irregularidades graves envolvendo o banco, levanta sérias dúvidas sobre a imparcialidade das decisões. Mesmo com a quarentena cumprida, a sequência de eventos expõe como a expectativa de futuras oportunidades pode influenciar a atuação de um regulador, subvertendo a motivação das decisões da Administração Pública em detrimento da ética e da confiança institucional.
A Captura Interpretativa ganhou destaque no caso Ambipar. A decisão de um membro da presidência da autarquia em processo administrativo, ignorando a determinação da área técnica pela realização de uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) — mecanismo vital para proteger minoritários —, ilustra como uma interpretação restritiva de conceitos pode autorizar o controlador da Ambipar a prosseguir sem a OPA. Essa decisão, que contrariou parecer técnico e enfraqueceu um instrumento de proteção ao acionista minoritário, ecoa a advertência do TCU sobre a arbitrariedade e a ausência de jurisprudência organizada e transparente, flexibilizando a aplicação da norma protetiva em prol de interesses de acionistas majoritários e contribuindo para a instabilidade e o prejuízo aos investidores, como se revelou posteriormente com a recuperação judicial da Ambipar.
Adicionalmente, a crise de credibilidade gerada pela operação Compliance Zero, que culminou na liquidação extrajudicial do Banco Master, somada às questões sobre o “caixa” da Ambipar antes de sua RJ, revela a captura sistêmica envolvendo as grandes empresas de auditoria. A KPMG emitiu uma opinião “sem ressalvas” para a contabilidade do Banco Master, mesmo com “ativos de nível maior de incerteza”. A Deloitte, revisando os demonstrativos financeiros da Ambipar, chancelou um “caixa” de R$ 4,7 bilhões que se revelaria em grande parte ilíquido, compreendendo fundos de ativos altamente questionáveis atrelados ao próprio Banco Master, sem liquidez alguma. As “opiniões” dessas auditorias criaram uma fachada de solidez que enganou o mercado e os investidores. Quando os próprios “cães de guarda” do mercado falham em soar o alarme de forma eficaz, seja por conflito de interesses, pressões comerciais ou interpretações complacentes, a captura se estende para além do regulador, desmantelando os mecanismos de controle e a confiança do investidor.
A soma dessas fragilidades, à luz dos casos atuais, transcende os debates sobre eficiência regulatória, abrindo espaço para reflexões cruciais sobre a ética na regulação. A subversão dos interesses da Administração Pública por interesses pontuais e privados abala a confiança e causa uma densa erosão moral que se espalha por todo o mercado. O regulador não pode servir como selo de aprovação para operações que mascaram riscos ou como palco para jogos de influência onde a imparcialidade é esquecida. Os prejuízos são imensuráveis, não se limitando às perdas financeiras diretas para os investidores, mas alcançando a corrosão da própria credibilidade do mercado de capitais brasileiro.
Sobre a autora:
Lucía Ferrés nasceu no Uruguai, é Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP possui Mestrado em Direito pela PUC-SP, e é formada em Ciências Sociais pela UNICAMP. Atua como advogada em diferentes segmentos do mercado de valores mobiliários. É autora do livro Do Comando e Controle à Regulação Responsiva: Uma Análise a partir da Regulação do Mercado de Valores Mobiliários

